quarta-feira, 3 de julho de 2013

O DISCURSO EUROPEU EM RELAÇÃO AO CORPO NA COLÔNIA




 

Neste capítulo analisaremos como o olhar português percebeu o cotidiano da América portuguesa. Esse olhar civilizatório adentrou a colônia e marcou a vida dos habitantes, tanto dos nativos como também dos europeus que aqui fizeram morada. A colônia, a partir do olhar europeu, lusitano, era um território que divulgava indecências e imoralidades. Combater esses desregramentos era importante para o empreendimento da colonização tanto nas mentalidades dos colonos como nos seus corpos. Quando Caminha escreve na sua carta relatando aos seus superiores às características das novas terras, a preocupação principal era a descrição das terras, vegetação e também da gente encontrada aqui. Os relatos em relação ao corpo dos nativos também tiveram ênfases, e suas características também foram descritas. Segundo Márcia Amantino (2011, p. 16):


O relato também fazia referência a outros aspectos culturais ligados aos corpos indígenas, entre os quais os cabelos, descritos como corredios, cortados e enfeitiçados, a pintura e o uso de objetos identificados como adornos. Com relação à pintura corporal, informava que eles usavam preto e vermelho nos troncos e nas pernas e que variava de pessoa para pessoa ou conforme o gênero. Já sobre o uso de adornos, o cronista descreveu que enfeitavam os lábios inferiores dos índios, o que não impedia de comer, beber ou falar.


Esse olhar do português para a colônia é marcado por uma gama de estereótipos que consequentemente deram características ao processo colonial. A escrita de Caminha legitima, inicialmente, a partir do seu olhar, a descoberta de um paraíso terrestre, e a sua gente se confunde, em um momento inicial, com a bondade do criador que fez tamanha e deslumbrante obra, e esse paraíso estava carente da gerência e dos cuidados que somente a civilidade poderia garantir.
As terras brasílicas eram assim descritas, como os olhos viam e como o pensamento inspirava, mas, sobretudo percebem-se articulações nas palavras do navegante português, os objetivos moralizantes e civilizatórios que deveriam, posteriormente, serem usados no paraíso recém-encontrado. Não chegava o português, as tão desejadas Índias, importante centro comercial da época, mas encontrava-se a possibilidade de legitimar na vastidão do território encontrado uma parte do mundo, da moral e da fé portuguesa. O Novo Mundo para o colonizador português era um paraíso pronto para ser utilizado como fonte geradora de riqueza, para isso seria necessário um mecanismo que atendesse as aspirações portuguesas da época. A partir de então podemos notar que houve uma transformação intencional que foi gerada pelo imaginário do colonizador, ao converter o paraíso inicial e um inferno. Mesmo que façamos uma leitura baseada por certa ingenuidade do europeu, vamos perceber desde o começo as intencionalidades dos colonos sendo efetivadas no dia-a-dia da colônia.
No Brasil o discurso europeu buscou legitimar o seu domínio sobre os índios, várias tentativas para moldá-lo e tentar inseri-lo no sistema de colonização português foram utilizadas, buscando uma representação mais próxima possível do modelo vivido na Europa, e o corpo foi o principal alvo dessa ideologia, combatendo os desregramentos e o que não era decente para um mundo “civilizado”.
O primeiro contato que os portugueses tiveram com os habitantes das novas terras não causou muito espanto, pois sua nudez foi associada a uma espécie de pobreza e inocência, mais a partir do contato rotineiro entre colonos e os nativos, os desconfortos logos surgiram da parte do português, que começava a ver no outro práticas que precisavam ser combatidas, para o bom andamento da colonização e manutenção da fé cristã. Quando Caminha escreve em sua carta descrevendo os habitantes das terras, “eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas...” num primeiro momento não foi visto uma ameaça real quanto ao corpo do índio, mas a partir do momento que a colonização é empreendida, essa situação se tornou foco de constrangimentos e desconforto, sendo necessário ao português usar desse tema para uma justificação plausível no controle das terras e domação do nativo, sendo a primeira preocupação justamente a nudez, segundo Mary Del Priore (2011, p. 17):


Vesti-lo era afastá-lo do mal e do pecado. O corpo nu era concebido como foco de problemas duramente combatidos pela Igreja nesses tempos: a luxúria, a lascívia, os pecados da carne. Afinal, como se queixava padre Anchieta, além de andar peladas, as indígenas não se negavam a ninguém.

A nudez do nativo passou a ser o foco de combate, sob o pretexto de assim se evitar os pecados nefandos da carne, um dos principais focos da cristandade. A medida que a colonização ia se estendendo, a Igreja percebeu que o perigo maior residia no uso que o nativo fazia do seu corpo, e qualquer característica que fosse contra essa regra era desculpa para uma catequização muitas vezes forçadas. Segundo Márcia Amantino (2011, p. 16):


Para eles, como não era importante cobrir seus rostos, não fazia a menor diferença tampar ou não seus corpos, situação constrangedora e aflitiva para os europeus, os quais, assim, trataram logo de entregar aos índios algumas peças de vestuário.


As medidas iniciais citadas por Amantino foram a de cobrir os corpos dos índios, que a priori foi resolvido, para assim ficarem mais apresentáveis ao público português, essa medida foi emergencial, até que os perigos realmente claros apareceriam com a convivência que se promoveria com a colonização. Por isso foi que o português “vestiu o índio”, ou seja, lhe impôs sua cultura e seus valores. A ‘europeização’ começava então no contato incial entre os dois povos, se destacando principalmente nos novos moldes que deveriam ser dados aqueles corpos.
As questões acerca do corpo sempre foram palco para discursões no cristianismo, as variáveis a cerca desse assunto foram percebidas e são facilmente encontradas em terras brasílicas. Segundo Oliveira (2011, p. 45):


Na história do cristianismo, as referências ao corpo aparecem como uma variável constante. Todavia, elas não assumem um caráter uniforme, pois ora o corpo é elemento de salvação – o de Cristo -, ora pode levar a danação, se sobre ele não se estabelecesse uma constante vigilância e por vezes, um menosprezo e um desapego.


Partindo desse pressuposto, como adestrar a vida da colônia brasílica no modelo do corpo sem manchas do Cristo? A multiplicidade de práticas e costumes encontrados aqui na colônia assustou e permeou o pensamento cristão do colonizador. Práticas como sodomia (homossexualidade), incesto, antropofagismo, são elementos comuns, dentre outros, facilmente encontrados no cotidiano da gente que aqui vivia, sendo consideradas práticas demoníacas, de gentes bárbaras, totalmente irracionais que agora viviam no mundo civilizado, dos agentes da colonização. Esse cotidiano da colônia passa agora a ser permeado por todas essas mazelas condenadas pelos colonizadores. Aniquilar todas essas imagens perigosas só poderia ser possível se o foco condutor fosse o de aproximar o mais rápido possível esses habitantes ao modelo do corpo exemplar do filho de Deus. Disciplinar os corpos e o próprio cotidiano em que eles estavam inseridos era exorcizar o demônio que parecia habitar e possuir inúmeros adeptos na América. O corpo passa a ser o elemento pelo qual se iria alcançar a santidade desejada, santidade essa que representava a ordem social que o colonizador estava inserido. Essa santidade gerava uma disciplinarização das sensibilidades por meio da aceitação de todas as regras impostas pela Igreja Católica. Essa harmonia social advinda da santificação era segundo Oliveira (2011, p. 67-68):


Corpo e santidade foram importantes no estabelecimento de uma religiosidade particular na América portuguesa. Elemento de uma crença tradicional na cristandade ocidental, o culto aos santos ajudou a reforçar diversos aspectos do catolicismo, ao longo do período colonial. Além da questão simbólica, expressou dimensões do projeto de conversão desenvolvido pela Igreja com o concurso de Estado português e igualmente serviu como reforço das hierarquias sociais. Nesse sentido, a corporificação da santidade foi expressão de diversas apropriações do sagrado e um elemento a reforçar a ordem social vigente, que procurou aproximar os fieis de um cristo mais concreto e, com isso, coloca-los diante da orientação e da submissão à Igreja. Tal se constituiu em uma instituição fundamental da formulação e veiculação de valores socioculturais e políticos conformadores de uma sociedade escravista e excludente. Ou seja, corpo santo, sociedade santificada, defesa da ordem, respeito à Igreja.


Desde as primeiras horas da presença portuguesa em solo americano, podemos perceber como já foi citado anteriormente, todas as predisposições que o colonizador possuía, dando ênfase a religiosa. Vimos na citação de Oliveira que a ajuda celeste foi solicitada constantemente pela gente lusitana. Por onde passavam, ao longo da expansão colonial, os santos eram invocados, buscando sua intercessão, nomeando lugares, rios em homenagem a esses servos de Deus que souberam nessa vida desejar o céu. Essa onipresença dos santos foi um dos elementos mais característicos da expansão da cristandade no ocidente e marcou o processo de colonização na América Portuguesa. Para a efetivação da colonização ser, digamos assim, um verdadeiro sucesso, os santos católicos tiveram função importantíssima nesse contexto, dando ao europeu a proteção que eles precisariam para a empreitada que estava por vir.
Ao lado do Estado europeu, a Igreja Católica ocupou uma posição de destaque na colonização americana. O espírito cruzadista, típico do período medieval, que esteve presente nos grandes empreendimentos marítimos, reapareceu na Época Moderna, confundindo-se com a própria missão colonizadora, razão pela qual a conquista da América está sempre relacionada, desde o seu início, a dois signos da civilização cristã europeia: a cruz e a espada.
A Igreja, representada pelas várias ordens religiosas - jesuíta, carmelita, dominicana e beneditina, entre outras - esteve presente no Brasil especialmente com a ação da Companhia de Jesus, participante de nossa história desde o momento em que Portugal assumiu diretamente a empresa colonizadora.
No século XVI, a “unidade” cristã europeia foi quebrada com o movimento da Reforma Protestante. Com a rápida expansão das doutrinas protestantes pregadas pelos seus líderes, ganhando maior destaque as figuras de Lutero e Calvino, a Igreja Católica reagiu com o Concílio de Trento, que, além da reforma interna, procurou criar instrumentos de combate ao protestantismo. Nessa medida, foi instituída a Congregação do Índice, proibindo a publicação de obras contrárias à doutrina católica, e restabelecido o Tribunal da Inquisição, destinado a perseguir e condenar os inimigos da fé católica. Diante deste quadro, o espanhol Inácio de Loyola criou, em 1534, a Companhia de Jesus, uma nova ordem religiosa com o objetivo de servir e de lutar pela Igreja Católica Apostólica Romana. Portanto, os jesuítas - soldados de Cristo - através da catequese e da educação, serviriam à ação da Contra Reforma, compensando as perdas do catolicismo na Europa com a conversão das populações nativas do Novo Mundo. Assim reconhece Del Priore que (2001, p. 16):


A colonização das almas indígenas não se deu apenas, porque o nativo era potencial força de trabalho a ser explorada, mas, também, porque os índios não tinham “conhecimento algum do seu Criador, nem de cousa do Céu”. Isso foi fundamental para dar uma característica de missão à presença de homens da Igreja na América portuguesa.


A divulgação da doutrina cristã foi, na colonização, uma prática com dupla função. Ao mesmo tempo em que a fé era imposta ela servia de mecanismo para civilizar os indígenas, ela serviu para não se perder as muitas almas que estavam sem proteção, e sem ela esses homens não chegariam nunca a civilização. Testemunhar e comungar a fé católica e estar sob as leis da monarquia, reconhecendo a soberania do rei, significava a inserção no mundo civilizado. Monarquia e Igreja trabalharam juntas a fim de obterem os resultados mediante a colonização das terras, a Igreja mediante a salvação das almas, com a disciplinarização dos corpos, e posteriormente o estado também colheriam os frutos dessa ação da Igreja. A missão dos jesuítas foi de fundamental importância para esse processo, eles tinham a função de defender e propagar a fé, fazendo assim o projeto de colonização fluir e ser satisfatório tanto para os religiosos, quanto para os homens do rei.
A problemática surgia justamente quanto ao método de melhor aplicação da catequese, já que se tratava de uma gente totalmente desconhecida, de língua desconhecida, com hábitos e costumes totalmente diferentes dos europeus. A imposição parecia a melhor forma de propagação, percebemos que a propagação da fé católica aqui na América como uma imposição, uma inserção dos habitantes no ideal e nas perspectivas do colonizador. A ideologia europeia se estabelecia de forma decisiva quando ela, não deixava o colonizador perceber, que aqui se travava de um mundo totalmente diferente do seu, merecendo, portanto, uma visão diferenciada, um meio diferente de propagar sua fé, uma realidade nova. As referências cristãs do europeu estavam totalmente impregnadas com o período de reformas religiosas que a Europa estava passando no século XVI, na qual a fé era imposta a força, e toda prática contrária combatida de forma violenta e radical, levando o colonizador a ver a gente indígena e entende-la como fora de suas expectativas. Então, impondo suas ideias, sua moral, sua crença o colonizador vai cada vez mais perceber o que ele concluiu logo que chegaram as terras tupiniquins: que a colonização chegou no momento certo, e principalmente, era missão dela ser a intervenção divina nessa realidade impensada, levando em conta o pressuposto de uma moral europeia, cristã-católica, e monárquica.
Diante desse cenário, os índios e suas práticas eram, a partir do pensamento europeu, algo ameaçador e que precisaria ser combatido. As suas práticas e costumes iam sendo combatidos mediante a colonização avançava. Primeiramente vale destacar o modo de como os grupos indígenas vivia. Para o europeu, não era concebido como normal o sistema tribal e as formas que ele se efetivava. Assim destaca Souza (2009, p. 92): 


A excessiva crueldade do indígena repugna à condição humana, dizia Gandavo na História da província de Santa Cruz: não apenas matam todos aqueles que não são do seu rebanho como também os comem, “usando nesta parte de cruezas tão diabólicas, que ainda nelas excedem aos brutos animais que não tem uso da razão”.


Aqui está descrita a figura do indígena como sendo um anti-humano, um homem animal, é essa a visão do europeu em relação ao indígena. A única solução, ou podemos dizer melhor, o único remédio para reverter toda essa situação era a imposição da fé, que precisava ser usada com urgência. A fé vestiria muitos corpos que se encontravam nus, carentes de uma moral racional que justificasse sua existência, essas almas estavam todas sedentas por salvação. Diante desse aspecto, a presença das instituições portuguesas na colônia, poderia ser comparada a soldados de Cristo que traziam o socorro, tanto de uma perspectiva civilizatória como espiritual. Essas instituições legitimavam o ideal colonizador do português, afetando decisivamente todo o cotidiano da colônia. À medida que os religiosos adentravam o Brasil, a civilidade e a espiritualidade do português se efetivavam no Novo Mundo, como também aumentava o número de católicos vindos da Europa para a colônia. Portanto, civilizava-se e cristianizava-se, Igreja Católica e a metrópole trabalhavam juntas, unidos religião e poder, desempenhando papel importante na imposição de suas ideias dominadoras.
Esse desejo de dá forma a um povo totalmente uniforme, nos faz compreender a importância da Companhia de Jesus na colonização, como citado anteriormente, criada para compensar as perdas da Igreja Católica no Velho Mundo, homens preparados tanto no campo espiritual, dos estudos bíblicos como também psicologicamente, para viajarem a lugares distantes no intuito de arrebanhar mais almas para a Igreja. Assim agiram os jesuítas, tentaram moldar os indígenas, suas práticas e modo de viver. O resultado previsto pelos colonizadores era o de total passividade por parte dos ameríndios, que eles seriam adestrados e moldados segundo a concepção de vida europeia, já que os primeiros relatos deixavam transparecer a crença de que seria fácil acabar com os “maus costumes” indígenas. Essa tentativa de modelar todo o comportamento e cotidiano do nativo contribuiu para o surgimento de um mal estra entre os jesuítas e os indígenas. Os índios, ao contrário do que se pensavam, também apresentaram resistência e negação à imposição do processo de colonização. Em inúmeros momentos isso se concretiza nos contatos entre os religiosos e as tribos, gerando verdadeiros embates no funcionamento da Companhia de Jesus. Segundo Márcia Amantino (2011, p. 20):


Inicialmente os jesuítas acreditaram que bastaria um trabalho eficiente de catequese e ensinamento da palavra de Deus e os indígenas abandonariam suas práticas bárbaras e encontrariam o caminho da salvação, pois eram seres bons por natureza. Todavia, as coisas não se passaram dessa forma. Depois de muitos problemas, os religiosos perceberam que os índios não eram capazes de abrir mão de sua cultura de maneira tão fácil.


O caminho da cristianização da colônia não seria percorrido sem serem travadas verdadeiras batalhas em nome da fé. De um lado estavam os agentes da Igreja, e do outros os muitos gentios, que por muitas vezes se negavam a aceitar essas mudanças tão drásticas. A resistência apresentada pelo nativo era uma forma de mostrar sua aversão ao desejo de vida proposto pelo homem branco, e acima de tudo uma maneira de se manterem vivos e unidos, frente a tantas realidades de morte e dizimação. Aos olhos do europeu, era fácil abrir mão de um cotidiano que era considerado por eles um ambiente demoníaco e selvagem. Mas, na prática a realidade era completamente diferente, os jesuítas experimentaram a dura realidade por não aceitarem um mundo diferente do seu.
A colonização baseou-se, então, na radicalização do pensamento português, usando uma fé que precisou ser imposta, garantindo o sucesso de uns frente a completa destruição de outros, e a Igreja ia cumprindo seu papel, auxiliando a monarquia, fazendo dos muitos santos, aliados fieis na construção de um território legitimamente civilizado controlados pela Igreja e pelo Estado Português. Com o avançar da colonização, muitos índios perderam sua identidade cultural, devido o contato com o português, outros apesar de mudarem seu estereótipo, continuavam resguardando traços culturais próprios, insistindo em continuar com suas práticas, segundo Laura de Mello e Souza (2009, p. 95): “[...] Conforme se iniciou a ação dos soldados de Cristo, passaram a existir “índios índios” e “índios conversos”, sujeitando-se estes a Deus e aqueles ao diabo [...]”.
Existiam agora na colônia, denominações que especificavam o grupo do qual suas práticas definiam o seu caráter civilizatório e quanto mais um grupo resistisse a catequização, mais seu grau de selvageria era elevado. Segundo Márcia Amantino (2011, p. 22):


O primeiro seria dos mansos, pacíficos e que aceitaram a catequese e o posterior aldeamento. Viviam no litoral, perto dos aglomerados coloniais. Exerciam atividades ligadas ao trabalho e prestavam serviços à sociedade. Geralmente eram identificados como Tupis. Também havia aqueles que viviam no interior, longe do litoral, nos chamados sertões. Eram os tapuias, identificados como grupos hostis, que não aceitaram aproximações com os colonos, a catequese, o aldeamento e muito menos o trabalho nas fazendas. Entre uns e outros, a inimizade e as guerras. Todavia, os conflitos também ocorriam no interior de cada um dos grupos.


Já vimos anteriormente que a expansão da fé católica e a colonização caminharam de mãos dadas, então, nada mais simples do que justificar a dominação dos nativos também pelo pressuposto de que eles também deveriam colaborar para o funcionamento da empresa colonial. Para isso os portugueses agiram, tentando a todo custo moldar os costumes e práticas dos índios, para que os mesmos se tornassem seres dóceis, capazes de realizarem os mais diversos trabalhos, como por exemplo, a agricultura. Mas surgia um porém... O ameríndio possuía seu próprio sistema de agricultura, visando apenas o necessário para se manterem, não se habituariam facilmente, se é que se habituariam, a uma agricultura que era exigida na colônia. Mais uma justificativa para inferiorizar o índio a condição de não humanizado, cegando a compará-los com os africanos que apesar de também não serem considerados “seres totalmente civilizados”, eram superiores aos indígenas, pois estavam habituados a relação de trabalho exigidas pelos portugueses, Mary Del Priore e Renato Pinto Venâncio (2001, p. 24) diz que:



Os portugueses ignoravam a identidade dos povos indígenas, acusando-os de não ter religião ou de desconhecer a agricultura. Consideravam que se nível civilizatório era inferior ao dos nativos africanos: parecer que muito breve iria justificar a exploração e a catequese obrigatória de tribos inteiras.




A partir dessa visão, esses argumentos foram usados para cometerem verdadeiras chacinas a grupos indígenas considerados desnecessários a colônia, pois já que não serviam para trabalhar, atendendo as necessidades da colônia, nem queriam entregar suas vidas a Deus, se convertendo ao Catolicismo, não tinham mais razão de existirem. Esses índios acusados de impedir o avanço da colonização portuguesa foram aos montes aniquilados. O aniquilamento de muitos como sua escravização forçada contribuíram para que os demais sobreviventes perdessem sua identidade, o orgulho que antes possuíam de pertencer a um determinado grupo. Um padre quando questionado sobre o que se fazer com uma determinada tribo, pertencente a uma região, sua resposta foi a seguinte, segundo Márcia Amantino (2011, p. 39):


A conclusão do Padre era bastante óbvia. Perguntava-se: de que servia os índios terem tantas terras boas que não eram cultivadas e não rendiam nada à Coroa nem a eles? As soluções haviam sido pensadas. Sugeria que fosse escolhido um administrador que os obrigasse ao trabalho; que as crianças aprendessem as primeiras letras, que as meninas fossem colocadas em casas de famílias para aprender coisas de seu sexo e, finalmente, que fossem dados às famílias indígenas pequenos pedaços de terras para que cultivassem. O restante deveria ser arrendado pela população não índia.


Conforme a colonização avançava pelo litoral, os europeus tentavam “enquadrar” os ameríndios aos poucos no sistema colonial, os que resistiam fugiam para os interiores, os sertões, que agora iriam receber a denominação de “inferno”, pois ai residia os “tapuias”, referência aos índios que resistiram brutalmente a civilidade, possuíam em seus corpos a marca do demônio. As fugas eram intensas, e os que fugiam eram estereotipados de “não civilizados”, e o interior da colônia, o sertão, era um lugar infernal por esconder a maior parte desses bárbaros, a parte litorânea já estava salva, os índios transformados a luz da palavra de Deus, os Tupis, bons e civilizados, esses passaram por transformações corporais vistas a olho nu. Os nãos conversos traziam em si a marca da condenação, seus corpos os entregavam quanto mais bizarros fossem, na ótica portuguesa, mais selvagem seriam. Os artefatos usados, suas vestimentas, e o uso que faziam de seu corpo e do próximo passaram a identificar o nível de civilidade que cada tribo possuía.
Dessa feita percebemos que quanto mais estranhos e bizarros fossem ao olhar europeu, os indígenas, mais longe da civilização estariam, precisando uma catequização urgente, mesmo se fosse pelo uso da violência, o meio não importava, o resultado era o mais importante, pois como já foi dito, seus corpos para nada serviam, a não ser para o trabalho, mais logo foram substituídos pelos africanos, que custavam menos, e já estavam, vamos dizer assim, “meio civilizados”, aptos ao trabalho na colônia. Dos índios agora restava apenas suas almas para Deus.


 Autor : Walmar Machado, Historiador Pelas FIP.














INTENCIONALIDADES PORTUGUESAS NA COLONIZAÇÃO DAS TERRAS BRASÍLICAS




 

Neste capítulo abordaremos as intenções portuguesas em colonizar o Brasil, partindo do pressuposto de que os portugueses ao mesmo tempo que buscavam novos mercados para comercializar tinham também a preocupação de trazer novas almas ao rebanho da Igreja Católica, que na época passava por sua “reforma”. Também discutiremos sobre o conceito de moralidade presente no colonizador, percebendo e analisando a importância desse pensamento e a influencia que ele estabeleceu sobre o processo de colonização. Portanto pretendemos aqui analisar os pressupostos que levaram a colonização, suas justificativas e pretensões.
Em 22 de abril de 1500 dá-se o início a uma das mais espetaculares histórias do Brasil, cheias de aspectos místicos, controvérsias e levadas a inúmeros fins. O “descobrimento” como é descrito leva a tona pela primeira vez a existência de terras nunca vistas, despertando no imaginário europeu dúvidas e dilemas, trazendo para as novas terras todo o imaginário que outrora era tido sobre o Oriente. As terras brasileiras poderiam ter sido “descobertas” e colonizadas por qualquer outro povo europeu, mas foram os povos ibéricos quem primeiro se dispuseram a desbravar as águas do atlântico, talvez por sua localização privilegiada frente ao oceano atlântico, ou por suas habilidades marítimas superiores a dos seus vizinhos. Não é surpresa para ninguém que o avanço das ciências e o desenvolvimento de técnicas marítimas cada vez mais avançadas ajudaram e muito ao êxito das expedições marítimas, como afirma Laura de Mello e Souza (1993, p.21):


A descoberta da América apressaria inclusive a consolidação da moderna ciência, assentada no que hoje chamamos de paradigma galilaico; garantiria a vitória do cálculo matemático e de uma percepção ordenada do universo, onde fenômenos até então incompreensíveis ou explicados em chave maravilhosa passavam a ter explicação racional e razoável.


No momento em que o renascimento[1] despontava nos países da Europa, as normas científicas se estabeleciam no meio acadêmico. Os métodos, cada vez mais aperfeiçoados pelos estudiosos racionais da época, ganhavam espaço e tudo deveria passar por um teste comprovatório para garantir sua eficácia. O descobrimento das terras americanas veio fundamentar esses métodos de explicação retratando o avanço que essas técnicas proporcionaram ao homem europeu.
Afora todos os benefícios trazidos pelo avanço da cientificidade no século XIV, Portugal foi pioneiro na técnica marítima e o primeiro desbravador das águas do Atlântico. Para entendermos essa prioridade vale de inicio destacar a centralização antecipada do Estado Português que tem sua origem relacionada à Reconquista[2] do seu espaço. Elementos da nobreza participaram no objetivo de pegar de volta as terras e expulsar definitivamente os árabes que estavam ali desde o século VIII, culminando com a ascensão da Dinastia Avis ao poder, fato que contribuiu de forma positiva nessa centralização, Segundo Fernando A. Novais (1998, p. 20):


O pioneirismo de Portugal deve-se, assim, á precocidade da centralização política (acelerada a partir dos Avis), e não, como é costume dizer-se, à posição geográfica no extremo ocidental da Europa (o “jardim à beira-mar plantado”), pois sempre esteve lá e somente no século XV realiza as grandes navegações.


Vemos então que a localização privilegiada de Portugal, frente ao Oceano Atlântico em nada determinou esse pioneirismo marítimo do país, há fatores que influenciaram essas viagens. A começar pelo contexto político que se instalava no território, depois de efetivada a reconquista a Revolução de Avis desempenhou papel importante na centralização do estado recém-criado de Portugal, após a morte de D. Fernando, último Rei da dinastia Borgonha, formaram-se dois grupos rivais em Portugal, um era liderado pela burguesia, que apoiava a ascensão do Mestre Avis, filho bastardo do pai de D. Fernando de Borgonha, representando os interesses desta contra a nobreza; e outro, liderado pela nobreza que apoiava a anexação de Portugal ao reino de Castela (Espanha), pois a filha de D. Fernando era casada com o rei de Castela. Com a ascensão do Mestre de Avis, coroado como D. João I, temos o início da dinastia de Avis que marcou a vitória dos interesses burgueses.
Podemos perceber que a unificação do território português deu-se ao mesmo tempo que o fortalecimento do poder real, representado pela dinastia de Borgonha (ou Avis). A Revolução de Avis marcou o início de um período na história portuguesa, em que a burguesia terá grande influência sobre este Estado, criando as condições necessárias para a expansão marítima.
Outro fator crucial para começar as navegações pelo Atlântico era o fato de que o comércio terrestre não trazia lucros para Portugal devido a grande concorrência que enfrentava. A necessidade de baratear os preços das especiarias, com eliminação de intermediários, a procura de novos centros fornecedores de matérias-primas e de mercados consumidores, a busca de metais preciosos, cuja descoberta alimentavam os sonhos dos aventureiros, foram motivos suficientemente fortes para os navegadores colocarem as caravelas no mar e partirem em direção ao desconhecido. Tínhamos de um lado os espanhóis que estavam com o seu território obstruído, dividido pela batalha contra os árabes, e do outro o Mediterrâneo que se achava completamente dominado pelos italianos (venezianos e genoveses), que monopolizavam todo o comércio de especiarias daquela região, juntamente com os árabes, ampliando cada vez mais sua rota de comércio dos produtos trazidos do Oriente. Outro imperativo para a busca de novas rotas foi o fato de os turcos terem bloqueado todo e qualquer comércio, invadindo e conquistando a sede do Império Romano no Oriente (Constantinopla) paralisando toda rota comercial naquela área.
A única solução para Portugal seria expandir suas navegações pelo Oceano Atlântico para realizar seu comércio, explorando as costas africanas, onde existiam importantes cidades árabes com as quais se poderia comercializar, buscando através dessas rotas um caminho para se chegar às Índias. Freyre (1933) nos conta que vem desse contato intenso com o Continente Africano a habilidade do português de viver nos trópicos, de desenvolver uma colonização extensa e ter conhecimento do trabalho negro, o qual usou em abundância aqui na colônia frente ao fracasso do trabalho indígena para o tipo de atividade requerida pelo colonizador. Segundo Gilberto Freyre (1933, p.65): “Quando em 1532 se organizou econômica e civilmente a sociedade brasileira, já foi depois de um século inteiro de contato dos portugueses com os trópicos; de demonstrada na Índia e na África sua aptidão para a vida tropical [...]”.
A medida que o estado nacional português formava-se, a burguesia ganhava força e espaço político, procurando junto ao poder real expandir suas áreas colônias com as quais poderia consumir e comercializar seus produtos. Para os estados nacionais da época, colonizar era explorar e povoar uma área a fim de usufruir de suas riquezas, para isso era necessário criar políticas econômicas. O Mercantilismo veio justamente para isso, um dos princípios básicos dessa política econômica era que as colônias existiam apenas para atender aos interesses das metrópoles, que procuravam o máximo de lucro possível, impondo um conjunto de medidas, cujo os historiadores hoje chamam de sistema colonial. A Colônia passa agora a ser parte integrante da metrópole, segundo Laura de Mello e Souza (2009, p.46): “o Brasil passava também a ser prolongamento da metrópole, conforme avançava o processo colonizatório. Tudo o que existe lá, existe aqui, mas de forma específica, colonial.” Esse prolongamento deu-se tanto no campo material, político, e principalmente no imaginário, como veremos a seguir.
O homem quinhentista tinha impregnado no seu imaginário concepções e ideias acerca do desconhecido, alimentado durante séculos por histórias de escritores, que relatavam histórias de homens que desbravavam terras longínquas e desconhecidas, adquirindo riquezas e muitas vezes transformando essas terras em reinos sob o seu domínio. Vejamos a afirmação de Souza (2009, p.37):


Desde cedo, portanto, as narrativas de viagens aliavam fantasia e realidade, tornando fluidas as fronteiras entre o real e imaginário: aventuras fictícias como a de são Patrício continham elementos extraídos do mundo terreno, aventuras concretas como as de Marco Polo se entremeavam com relatos fantásticos, com situações inverossímeis que, tendo ouvido de alguém, o mercador acreditava ter vivido.


Para esse homem era muito difícil se desprender ou mesmo não dá crédito a esse imaginário devido às muitas histórias e “estórias” do “ouviu-se dizer”. Tudo isso contribuiu para causar no Velho Mundo certo temor, seguido por uma curiosidade de tornar real esse sonho imaginário cada vez maior no passar do século XVI. Todas as literaturas acerca de viagens e aventuras, mesmo que imaginárias, contribuíram para incluir o que era imaginário na realidade. Portanto, não é surpresa que os colonizadores atrelaram e tornaram quase ilimitadas essas ligações entre o real e o imaginário. Segundo Le Goff (2008, p. 86):


No século XVI, a maior parte dos europeus vivem ainda na Idade Média, mas as mudanças se aceleram, as grandes descobertas estimulam o interesse pelos horizontes mundiais. O afluxo de metais preciosos americanos – ouro e prata – permite o aumento da moeda em circulação.


Dando prioridade e importância a esses lugares exóticos existentes no imaginário da época, e o desejo de os tornarem realidade, fez com que os desbravadores de mares investissem muito nessa empreitada na busca por esse imaginário. Para Le Goff (2008) a Europa do século XVI foi impulsionada pelo próprio ritmo de seu tempo, era preciso deixar pra trás uma mentalidade que já não fazia jus aos novos interesses que estavam surgindo. Vemos que organizar uma viagem marítima, no contexto da expansão comercial da época, era estar aberto a diversas transformações e experiências como a quebras de tabus dantes apenas imaginados.
O descobrimento das terras americanas ocasionou certo tumulto na Europa, sobretudo em virtude dos seus habitantes que de longe se diferenciavam do conceito de civilidade que se instalava em Portugal, conceito esse que servia para controlar os corpos e uni-los em torno de um bem comum a fim de monitorar suas intimidades e integra-los num sistema onde seus hábitos e costumes, como também sua vida íntima eram relacionados ao seu corpo, Segundo Jacques Revel (1991, p. 169):


Com efeito, o século XVI é o de um intenso esforço de codificação e controle dos comportamentos. Submete-os às normas da civilidade, isto é, às exigências do comércio social. Existe uma linguagem dos corpos, sim, porém destina-se aos outros, que devem poder captá-la.


Em virtude desse pensamento, fez-se necessário na América Portuguesa uma colonização que atendesse ao mercantilismo, impulsionando as grandes navegações, como também ficaria responsável de fazerem os habitantes das novas terras serem inclusos a esse sistema “civilizatório”, tendo em vista que os mesmos deveriam ter seus corpos domesticados para atender a demanda exigida pelo sistema mercantilista. Laura de Melo e Souza (2009) enfatiza a presença de pensamentos ligados a aspectos demoníacos no imaginário dos descobridores. Esses mesmos aspectos se fizeram presentes na chegada e toda participação na colonização das novas terras, marcando o período renascentista na Europa e colocando em voga tensões como inferno e paraíso, pensamento laico e religioso e assim por diante, mentalidade essa que continuou na colônia brasílica. Segundo Melo e Souza (2009, p. 22):


Tensão entre o racional e o maravilhoso, entre o pensamento laico e o religioso, entre o poder de Deus e do Diabo, embate, enfim, entre o bem e o mal marcaram desta forma concepções diversas acerca do novo mundo. Para os primeiros colonizadores e catequistas da América, que viveram numa época em que contendas religiosas dilaceravam a Europa, o recurso a tal embate não era simples retórica, mas índice de mentalidade onde o plano religioso ocupava lugar de destaque, mostrando-se presente nos mais diversos setores da vida cotidiana. 


Ao mesmo tempo em que os portugueses procuravam novos mercados para comercializar existia a preocupação de trazer novas almas ao rebanho da Igreja, que atuava juntamente com o estado, tendo os catequistas papel muito importante na colonização, uma vez que a evangelização servia tanto para trazer a alma do nativo ao rebanho como também para domestica-lo e inclui-lo no sistema colonizador, a fim de transformar a colônia numa verdadeira réplica e continuidade do Estado Português. A Igreja Católica se empenhou também a colonização das terras brasílicas, participando juntamente com os colonizadores, principalmente na domesticação dos povos aqui encontrados, no intuito de ao mesmo tempo ganhar sua alma para Deus, incluí-lo no sistema colonizador.
Na citação anterior, Melo e Souza (2009) nos diz que os primeiros colonizadores e catequistas que vieram para cá viviam sob um embate religioso que dilacerava a Europa, de um lado os Protestantes ganhando cada vez mais espaço, conquistando reis e reinos que queriam viver livres da dominação de Roma, do outro a Igreja Católica com sua Contra Reforma, investindo não mais na perseguição dos que eram contrários a sua doutrina, mas na preparação de missionários mais qualificados, combatendo de frente a Reforma Protestante, Ronaldo Vainfas (2010, p. 37) afirma que:


E, ponto central da nova estratégia católica, sem o que nem a moral nem a religiosidade popular tornar-se-iam genuinamente cristãs, cumpria remodelar o corpo eclesiástico: profissionalizá-lo, sobretudo com a criação de seminários; estimular a vocação sacerdotal, protegendo-a das imposições familiares e valorizando a primazia do estado clerical sobre os demais estados; zelar, enfim, pela austeridade moral dos clérigos, seculares ou regulares, sistematizando-se as inspeções diocesanas e vigiando-se, na medida do possível, as ordens religiosas.


Era preocupação vigente da Igreja Católica preparar bem os eclesiásticos afim de ao mesmo tempo que eles iriam ter respaldo teológico para bater de frente com os protestantes, que sempre andavam bem preparados e respaldados na bíblia como única fonte de fé, como também limpar de certa forma a imagem de um Clero que estava fadado a cair no desprestígio, fruto de longos anos de interferência familiar e também do estado na formação do clero, que muitas vezes era constituído por pessoas sem o mínimo de vocação para a área, estando ali apenas para satisfazer o desejo de familiares e ocupar posições elevadas na sociedade. Fica claro também o interesse da Reforma Católica com as novas terras descobertas pelos portugueses, era necessário formar missionários bem capacitados para trazer o evangelho de Cristo às pessoas das terras Brasílicas, a fim de trazer salvação a essas almas, como também ajudar ao estado no processo de Colonização. Segundo Vainfas (2010, p. 39): “Nos domínios portugueses foram sempre os jesuítas que, desde os primórdios da expansão, lograram obter a primazia no campo missionário[...]”.
Nas terras Brasílicas a contra Reforma da Igreja Católica também se fez presente, principalmente na evangelização dos povos aqui encontrados, projeto importantíssimo da Igreja na extensão dos seus domínios no Novo Mundo. E quem melhor que os Jesuítas para fazer jus à tão grande papel, muitíssimo preparados se imbuíram do papel de ajudar na colonização catequizando e amansando os índios. Sobre a Contra Reforma no Brasil Vainfas (2010, p. 41) nos diz que: “Ao Brasil chegou pela voz dos jesuítas liderados por Nóbrega, ansiosos para iniciar a conversão das gentes do trópico [...]”.
Não podemos nos esquecer da predisposição também do português de ser o transmissor da mensagem de Deus aqui na Terra. Eles se viam com a carga de serem além de conquistadores, enviados por Deus para evangelizar os povos gentis que fossem encontrados nas terras descobertas. Segundo Laura de Mello e Souza (2009, p. 49): “Os portugueses se imbuíram sinceramente de seu papel missionário. Os outros homens, por instituição divina, tem só obrigação de ser católico: o português tem obrigação de ser católico e de ser apostólico.” Era um pensamento constante que circulava em Portugal, principalmente no meio dos eclesiásticos que no meio de tantos outros povos, Deus tinha escolhido Portugal para a missão de colonizar e fazer as terras recém-descobertas produzir riquezas como também resgatar as almas dos seus habitantes para Deus. Uma vez que expansão da fé e colonização caminharam juntas, nada mais simples do que justificar a dominação dos nativos a partir do pressuposto de que eles não tinham leis nem religião, portanto um nível civilizatório inferior ao dos europeus.
Então em nome de Deus os portugueses tentaram a todo custo moldar os costumes, práticas... Enfim a cultura do índio, para tornar o mesmo um ser dócil e capaz de realizar diversos trabalhos como o da exploração do Pau Brasil e a agricultura de produções elevadas. O ameríndio possuía seu próprio sistema de agricultura, mas era um sistema voltado para o alto consumo, que não era objetivado pelo português, que usou desses argumentos para dominá-los, chegando até a compará-los com os negros que eram escravizados, pois estes sim estavam habituados a manterem essas relações de trabalho, portanto eram considerados mais ‘civilizados’ que os índios. De acordo com Mary Del Priore e Renato Pinto Venâncio (2001, p.24):


Os portugueses ignoravam a identidade dos povos indígenas, acusando-os de não ter religião ou de desconhecer a agricultura. Consideravam que seu nível civilizatório era inferior ao dos nativos africanos; parecer que muito breve iria justificar a exploração e a catequese obrigatória de tribos inteiras.


É notório que a colonização portuguesa se preocupou em fazer as terras brasileiras gerarem as riquezas que aqui não encontraram, e que uma das suas principais intenções seria moldar o corpo do índio, que estava habituado a um modo de vida totalmente diferente do seu, e torna-lo um corpo com características muito mais próximas das suas, onde qualquer sinal diferente seria motivo para banimento ou escravidão forçada dos mesmos.
Em todo o contexto colonial, de expansão territorial e conquista do mar percebemos o objetivo de fortalecer a nação portuguesa, concretizando-se com sua chegada a América. Daí também buscavam tirar proveitos todos aqueles que de alguma maneira se beneficiariam com as riquezas que aqui seriam encontradas, tanto o benefício próprio estava em jogo, como o político e religioso. Nesse momento da colonização fica claro que era indispensável às contribuições que a religião disponibilizava, que com sua forte ideologia e preceitos via na colonização um meio favorável para difundir e aumentar sua fé. Vale lembrar que foi através da fé católica, vinda da Europa, que foi usado para justificar os métodos e maneiras utilizadas na colonização para estabelecer a fé e concretizar a colonização no mundo do nativo, como nos afirma Souza (2009, p. 49):


Portanto, sem que os propósitos materiais fossem acanhados, cristianizar era, de fato, parte integrante do programa colonizador dos portugueses diante do Novo Mundo. Mais do que isso: parte importante, dado o destaque que tinha a religião na vida do homem quinhentista.


O destaque dado pelo homem quinhentista à religião é claramente perceptível quando nos deparamos com a forma de colonização empregada nas terras brasílicas, bem como também em como ela estava representada em cada peça do seu cotidiano, os barcos sempre com desenhos de cruzes, os objetos usados, a recepção nas novas terras, que sempre era comemorada com uma missa, e estendida uma bandeira com a imagem da Cruz, representando o seu espírito fielmente católico.
Toda essa religiosidade é fruto dos embates que aconteciam na Europa naquela época, como citado anteriormente, o continente estava mergulhado numa disputa entre o bem e o mal, o religioso versus o científico, protestantes versus católicos. Esse momento de transformações de ideias e valores que a Europa estava vivendo se refletia claramente no combate as práticas culturais por parte dos portugueses. Com o Renascimento, os pensadores humanistas se destacavam cada vez mais com seus estudos, e o homem pouco à pouco ia se tornando o alvo a ser observado e estudado, os padrões mudavam lentamente , e o corpo ganhava destaque nessa transformação, sendo um dos principais focos de onde essas mudanças eram vistas, ganhando destaque e regras que se responsabilizavam por adaptá-lo ao novo modo de vida, Segundo Mary Del Priore (2011, p.13): [...] A vida cotidiana naquela época era regulada por leis imperativas. Fazer sexo, andar nu ou ter reações eróticas eram práticas que correspondiam a ritos estabelecidos pelo grupo no qual se estava inserido[...].
Na Europa o corpo era, portanto, regulado a partir do grupo social em que o individuo estava inserido, sendo todos os seus movimentos codificados, desde sua postura até seu modo de falar, passando de objeto portador do pecado, completamente ignorado e repudiado, para representante de todas essas gamas de transformações, fato que nos faz compreender a forma de colonização empregada nas terras “tupiniquins”.






Autor : Walmar Machado, Licenciado pelas FIP.














[1] Segundo José Américo Pessanha (1999, p.19) [...] não é fácil circunscrever com exatidão geográfica e temporal o Renascimento. Vasto e diversificado movimento cultural ocorrido em vários países da Europa, a partir de momentos e circunstâncias diferentes.
[2] A Reconquista (também referenciada como Conquista cristã) é a designação historiográfica para o movimento ibérico cristão com início no século VIII que visava à recuperação das terras perdidas para os invasores árabes, durante a invasão muçulmana da Península Ibérica.