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Neste capítulo
analisaremos como o olhar português percebeu o cotidiano da América portuguesa.
Esse olhar civilizatório adentrou a colônia e marcou a vida dos habitantes,
tanto dos nativos como também dos europeus que aqui fizeram morada. A colônia,
a partir do olhar europeu, lusitano, era um território que divulgava
indecências e imoralidades. Combater esses desregramentos era importante para o
empreendimento da colonização tanto nas mentalidades dos colonos como nos seus
corpos. Quando Caminha escreve na sua carta relatando aos seus superiores às
características das novas terras, a preocupação principal era a descrição das
terras, vegetação e também da gente encontrada aqui. Os relatos em relação ao
corpo dos nativos também tiveram ênfases, e suas características também foram
descritas. Segundo Márcia Amantino (2011, p. 16):
O relato
também fazia referência a outros aspectos culturais ligados aos corpos
indígenas, entre os quais os cabelos, descritos como corredios, cortados e
enfeitiçados, a pintura e o uso de objetos identificados como adornos. Com
relação à pintura corporal, informava que eles usavam preto e vermelho nos
troncos e nas pernas e que variava de pessoa para pessoa ou conforme o gênero.
Já sobre o uso de adornos, o cronista descreveu que enfeitavam os lábios
inferiores dos índios, o que não impedia de comer, beber ou falar.
Esse olhar do
português para a colônia é marcado por uma gama de estereótipos que
consequentemente deram características ao processo colonial. A escrita de Caminha
legitima, inicialmente, a partir do seu olhar, a descoberta de um paraíso
terrestre, e a sua gente se confunde, em um momento inicial, com a bondade do
criador que fez tamanha e deslumbrante obra, e esse paraíso estava carente da
gerência e dos cuidados que somente a civilidade poderia garantir.
As terras
brasílicas eram assim descritas, como os olhos viam e como o pensamento
inspirava, mas, sobretudo percebem-se articulações nas palavras do navegante
português, os objetivos moralizantes e civilizatórios que deveriam,
posteriormente, serem usados no paraíso recém-encontrado. Não chegava o
português, as tão desejadas Índias, importante centro comercial da época, mas
encontrava-se a possibilidade de legitimar na vastidão do território encontrado
uma parte do mundo, da moral e da fé portuguesa. O Novo Mundo para o
colonizador português era um paraíso pronto para ser utilizado como fonte
geradora de riqueza, para isso seria necessário um mecanismo que atendesse as
aspirações portuguesas da época. A partir de então podemos notar que houve uma
transformação intencional que foi gerada pelo imaginário do colonizador, ao
converter o paraíso inicial e um inferno. Mesmo que façamos uma leitura baseada
por certa ingenuidade do europeu, vamos perceber desde o começo as
intencionalidades dos colonos sendo efetivadas no dia-a-dia da colônia.
No Brasil o
discurso europeu buscou legitimar o seu domínio sobre os índios, várias
tentativas para moldá-lo e tentar inseri-lo no sistema de colonização português
foram utilizadas, buscando uma representação mais próxima possível do modelo
vivido na Europa, e o corpo foi o principal alvo dessa ideologia, combatendo os
desregramentos e o que não era decente para um mundo “civilizado”.
O primeiro
contato que os portugueses tiveram com os habitantes das novas terras não
causou muito espanto, pois sua nudez foi associada a uma espécie de pobreza e
inocência, mais a partir do contato rotineiro entre colonos e os nativos, os
desconfortos logos surgiram da parte do português, que começava a ver no outro
práticas que precisavam ser combatidas, para o bom andamento da colonização e
manutenção da fé cristã. Quando Caminha escreve em sua carta descrevendo os
habitantes das terras, “eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes
cobrisse suas vergonhas...” num primeiro momento não foi visto uma ameaça real
quanto ao corpo do índio, mas a partir do momento que a colonização é
empreendida, essa situação se tornou foco de constrangimentos e desconforto,
sendo necessário ao português usar desse tema para uma justificação plausível
no controle das terras e domação do nativo, sendo a primeira preocupação
justamente a nudez, segundo Mary Del Priore (2011, p. 17):
Vesti-lo
era afastá-lo do mal e do pecado. O corpo nu era concebido como foco de problemas
duramente combatidos pela Igreja nesses tempos: a luxúria, a lascívia, os
pecados da carne. Afinal, como se queixava padre Anchieta, além de andar
peladas, as indígenas não se negavam a ninguém.
A nudez do
nativo passou a ser o foco de combate, sob o pretexto de assim se evitar os
pecados nefandos da carne, um dos principais focos da cristandade. A medida que
a colonização ia se estendendo, a Igreja percebeu que o perigo maior residia no
uso que o nativo fazia do seu corpo, e qualquer característica que fosse contra
essa regra era desculpa para uma catequização muitas vezes forçadas. Segundo
Márcia Amantino (2011, p. 16):
Para
eles, como não era importante cobrir seus rostos, não fazia a menor diferença
tampar ou não seus corpos, situação constrangedora e aflitiva para os europeus,
os quais, assim, trataram logo de entregar aos índios algumas peças de
vestuário.
As medidas
iniciais citadas por Amantino foram a de cobrir os corpos dos índios, que a
priori foi resolvido, para assim ficarem mais apresentáveis ao público
português, essa medida foi emergencial, até que os perigos realmente claros
apareceriam com a convivência que se promoveria com a colonização. Por isso foi
que o português “vestiu o índio”, ou seja, lhe impôs sua cultura e seus
valores. A ‘europeização’ começava então no contato incial entre os dois povos,
se destacando principalmente nos novos moldes que deveriam ser dados aqueles
corpos.
As questões
acerca do corpo sempre foram palco para discursões no cristianismo, as
variáveis a cerca desse assunto foram percebidas e são facilmente encontradas
em terras brasílicas. Segundo Oliveira (2011, p. 45):
Na
história do cristianismo, as referências ao corpo aparecem como uma variável
constante. Todavia, elas não assumem um caráter uniforme, pois ora o corpo é
elemento de salvação – o de Cristo -, ora pode levar a danação, se sobre ele
não se estabelecesse uma constante vigilância e por vezes, um menosprezo e um
desapego.
Partindo desse
pressuposto, como adestrar a vida da colônia brasílica no modelo do corpo sem
manchas do Cristo? A multiplicidade de práticas e costumes encontrados aqui na
colônia assustou e permeou o pensamento cristão do colonizador. Práticas como
sodomia (homossexualidade), incesto, antropofagismo, são elementos comuns, dentre
outros, facilmente encontrados no cotidiano da gente que aqui vivia, sendo
consideradas práticas demoníacas, de gentes bárbaras, totalmente irracionais
que agora viviam no mundo civilizado, dos agentes da colonização. Esse cotidiano
da colônia passa agora a ser permeado por todas essas mazelas condenadas pelos
colonizadores. Aniquilar todas essas imagens perigosas só poderia ser possível
se o foco condutor fosse o de aproximar o mais rápido possível esses habitantes
ao modelo do corpo exemplar do filho de Deus. Disciplinar os corpos e o próprio
cotidiano em que eles estavam inseridos era exorcizar o demônio que parecia
habitar e possuir inúmeros adeptos na América. O corpo passa a ser o elemento
pelo qual se iria alcançar a santidade desejada, santidade essa que
representava a ordem social que o colonizador estava inserido. Essa santidade
gerava uma disciplinarização das sensibilidades por meio da aceitação de todas
as regras impostas pela Igreja Católica. Essa harmonia social advinda da
santificação era segundo Oliveira (2011, p. 67-68):
Corpo e
santidade foram importantes no estabelecimento de uma religiosidade particular
na América portuguesa. Elemento de uma crença tradicional na cristandade
ocidental, o culto aos santos ajudou a reforçar diversos aspectos do
catolicismo, ao longo do período colonial. Além da questão simbólica, expressou
dimensões do projeto de conversão desenvolvido pela Igreja com o concurso de
Estado português e igualmente serviu como reforço das hierarquias sociais.
Nesse sentido, a corporificação da santidade foi expressão de diversas
apropriações do sagrado e um elemento a reforçar a ordem social vigente, que
procurou aproximar os fieis de um cristo mais concreto e, com isso, coloca-los
diante da orientação e da submissão à Igreja. Tal se constituiu em uma
instituição fundamental da formulação e veiculação de valores socioculturais e
políticos conformadores de uma sociedade escravista e excludente. Ou seja,
corpo santo, sociedade santificada, defesa da ordem, respeito à Igreja.
Desde as
primeiras horas da presença portuguesa em solo americano, podemos perceber como
já foi citado anteriormente, todas as predisposições que o colonizador possuía,
dando ênfase a religiosa. Vimos na citação de Oliveira que a ajuda celeste foi
solicitada constantemente pela gente lusitana. Por onde passavam, ao longo da
expansão colonial, os santos eram invocados, buscando sua intercessão, nomeando
lugares, rios em homenagem a esses servos de Deus que souberam nessa vida
desejar o céu. Essa onipresença dos santos foi um dos elementos mais
característicos da expansão da cristandade no ocidente e marcou o processo de
colonização na América Portuguesa. Para a efetivação da colonização ser,
digamos assim, um verdadeiro sucesso, os santos católicos tiveram função
importantíssima nesse contexto, dando ao europeu a proteção que eles
precisariam para a empreitada que estava por vir.
Ao lado do
Estado europeu, a Igreja Católica ocupou uma posição de destaque na colonização
americana. O espírito cruzadista, típico do período medieval, que esteve
presente nos grandes empreendimentos marítimos, reapareceu na Época Moderna,
confundindo-se com a própria missão colonizadora, razão pela qual a conquista
da América está sempre relacionada, desde o seu início, a dois signos da
civilização cristã europeia: a cruz e a espada.
A Igreja,
representada pelas várias ordens religiosas - jesuíta, carmelita, dominicana e
beneditina, entre outras - esteve presente no Brasil especialmente com a ação
da Companhia de Jesus, participante de nossa história desde o momento em que
Portugal assumiu diretamente a empresa colonizadora.
No século XVI, a
“unidade” cristã europeia foi quebrada com o movimento da Reforma Protestante.
Com a rápida expansão das doutrinas protestantes pregadas pelos seus líderes,
ganhando maior destaque as figuras de Lutero e Calvino, a Igreja Católica
reagiu com o Concílio de Trento, que, além da reforma interna, procurou criar
instrumentos de combate ao protestantismo. Nessa medida, foi instituída a
Congregação do Índice, proibindo a publicação de obras contrárias à doutrina
católica, e restabelecido o Tribunal da Inquisição, destinado a perseguir e
condenar os inimigos da fé católica. Diante deste quadro, o espanhol Inácio de
Loyola criou, em 1534, a Companhia de Jesus, uma nova ordem religiosa com o
objetivo de servir e de lutar pela Igreja Católica Apostólica Romana. Portanto,
os jesuítas - soldados de Cristo - através da catequese e da educação,
serviriam à ação da Contra Reforma, compensando as perdas do catolicismo na
Europa com a conversão das populações nativas do Novo Mundo. Assim reconhece
Del Priore que (2001, p. 16):
A
colonização das almas indígenas não se deu apenas, porque o nativo era
potencial força de trabalho a ser explorada, mas, também, porque os índios não
tinham “conhecimento algum do seu Criador, nem de cousa do Céu”. Isso foi
fundamental para dar uma característica de missão à presença de homens da
Igreja na América portuguesa.
A divulgação da
doutrina cristã foi, na colonização, uma prática com dupla função. Ao mesmo
tempo em que a fé era imposta ela servia de mecanismo para civilizar os
indígenas, ela serviu para não se perder as muitas almas que estavam sem
proteção, e sem ela esses homens não chegariam nunca a civilização. Testemunhar
e comungar a fé católica e estar sob as leis da monarquia, reconhecendo a
soberania do rei, significava a inserção no mundo civilizado. Monarquia e
Igreja trabalharam juntas a fim de obterem os resultados mediante a colonização
das terras, a Igreja mediante a salvação das almas, com a disciplinarização dos
corpos, e posteriormente o estado também colheriam os frutos dessa ação da
Igreja. A missão dos jesuítas foi de fundamental importância para esse
processo, eles tinham a função de defender e propagar a fé, fazendo assim o
projeto de colonização fluir e ser satisfatório tanto para os religiosos,
quanto para os homens do rei.
A problemática
surgia justamente quanto ao método de melhor aplicação da catequese, já que se
tratava de uma gente totalmente desconhecida, de língua desconhecida, com
hábitos e costumes totalmente diferentes dos europeus. A imposição parecia a
melhor forma de propagação, percebemos que a propagação da fé católica aqui na
América como uma imposição, uma inserção dos habitantes no ideal e nas perspectivas
do colonizador. A ideologia europeia se estabelecia de forma decisiva quando
ela, não deixava o colonizador perceber, que aqui se travava de um mundo
totalmente diferente do seu, merecendo, portanto, uma visão diferenciada, um
meio diferente de propagar sua fé, uma realidade nova. As referências cristãs
do europeu estavam totalmente impregnadas com o período de reformas religiosas
que a Europa estava passando no século XVI, na qual a fé era imposta a força, e
toda prática contrária combatida de forma violenta e radical, levando o
colonizador a ver a gente indígena e entende-la como fora de suas expectativas.
Então, impondo suas ideias, sua moral, sua crença o colonizador vai cada vez
mais perceber o que ele concluiu logo que chegaram as terras tupiniquins: que a
colonização chegou no momento certo, e principalmente, era missão dela ser a
intervenção divina nessa realidade impensada, levando em conta o pressuposto de
uma moral europeia, cristã-católica, e monárquica.
Diante desse
cenário, os índios e suas práticas eram, a partir do pensamento europeu, algo
ameaçador e que precisaria ser combatido. As suas práticas e costumes iam sendo
combatidos mediante a colonização avançava. Primeiramente vale destacar o modo
de como os grupos indígenas vivia. Para o europeu, não era concebido como
normal o sistema tribal e as formas que ele se efetivava. Assim destaca Souza
(2009, p. 92):
A
excessiva crueldade do indígena repugna à condição humana, dizia Gandavo na
História da província de Santa Cruz: não apenas matam todos aqueles que não são
do seu rebanho como também os comem, “usando nesta parte de cruezas tão
diabólicas, que ainda nelas excedem aos brutos animais que não tem uso da
razão”.
Aqui está
descrita a figura do indígena como sendo um anti-humano, um homem animal, é
essa a visão do europeu em relação ao indígena. A única solução, ou podemos
dizer melhor, o único remédio para reverter toda essa situação era a imposição
da fé, que precisava ser usada com urgência. A fé vestiria muitos corpos que se
encontravam nus, carentes de uma moral racional que justificasse sua
existência, essas almas estavam todas sedentas por salvação. Diante desse
aspecto, a presença das instituições portuguesas na colônia, poderia ser
comparada a soldados de Cristo que traziam o socorro, tanto de uma perspectiva
civilizatória como espiritual. Essas instituições legitimavam o ideal
colonizador do português, afetando decisivamente todo o cotidiano da colônia. À
medida que os religiosos adentravam o Brasil, a civilidade e a espiritualidade
do português se efetivavam no Novo Mundo, como também aumentava o número de
católicos vindos da Europa para a colônia. Portanto, civilizava-se e
cristianizava-se, Igreja Católica e a metrópole trabalhavam juntas, unidos
religião e poder, desempenhando papel importante na imposição de suas ideias
dominadoras.
Esse desejo de
dá forma a um povo totalmente uniforme, nos faz compreender a importância da
Companhia de Jesus na colonização, como citado anteriormente, criada para
compensar as perdas da Igreja Católica no Velho Mundo, homens preparados tanto
no campo espiritual, dos estudos bíblicos como também psicologicamente, para
viajarem a lugares distantes no intuito de arrebanhar mais almas para a Igreja.
Assim agiram os jesuítas, tentaram moldar os indígenas, suas práticas e modo de
viver. O resultado previsto pelos colonizadores era o de total passividade por
parte dos ameríndios, que eles seriam adestrados e moldados segundo a concepção
de vida europeia, já que os primeiros relatos deixavam transparecer a crença de
que seria fácil acabar com os “maus costumes” indígenas. Essa tentativa de
modelar todo o comportamento e cotidiano do nativo contribuiu para o surgimento
de um mal estra entre os jesuítas e os indígenas. Os índios, ao contrário do que
se pensavam, também apresentaram resistência e negação à imposição do processo
de colonização. Em inúmeros momentos isso se concretiza nos contatos entre os
religiosos e as tribos, gerando verdadeiros embates no funcionamento da
Companhia de Jesus. Segundo Márcia Amantino (2011, p. 20):
Inicialmente
os jesuítas acreditaram que bastaria um trabalho eficiente de catequese e
ensinamento da palavra de Deus e os indígenas abandonariam suas práticas
bárbaras e encontrariam o caminho da salvação, pois eram seres bons por
natureza. Todavia, as coisas não se passaram dessa forma. Depois de muitos
problemas, os religiosos perceberam que os índios não eram capazes de abrir mão
de sua cultura de maneira tão fácil.
O caminho da
cristianização da colônia não seria percorrido sem serem travadas verdadeiras
batalhas em nome da fé. De um lado estavam os agentes da Igreja, e do outros os
muitos gentios, que por muitas vezes se negavam a aceitar essas mudanças tão
drásticas. A resistência apresentada pelo nativo era uma forma de mostrar sua
aversão ao desejo de vida proposto pelo homem branco, e acima de tudo uma
maneira de se manterem vivos e unidos, frente a tantas realidades de morte e
dizimação. Aos olhos do europeu, era fácil abrir mão de um cotidiano que era
considerado por eles um ambiente demoníaco e selvagem. Mas, na prática a
realidade era completamente diferente, os jesuítas experimentaram a dura
realidade por não aceitarem um mundo diferente do seu.
A colonização
baseou-se, então, na radicalização do pensamento português, usando uma fé que
precisou ser imposta, garantindo o sucesso de uns frente a completa destruição
de outros, e a Igreja ia cumprindo seu papel, auxiliando a monarquia, fazendo
dos muitos santos, aliados fieis na construção de um território legitimamente
civilizado controlados pela Igreja e pelo Estado Português. Com o avançar da
colonização, muitos índios perderam sua identidade cultural, devido o contato
com o português, outros apesar de mudarem seu estereótipo, continuavam
resguardando traços culturais próprios, insistindo em continuar com suas
práticas, segundo Laura de Mello e Souza (2009, p. 95): “[...] Conforme se
iniciou a ação dos soldados de Cristo, passaram a existir “índios índios” e
“índios conversos”, sujeitando-se estes a Deus e aqueles ao diabo [...]”.
Existiam agora
na colônia, denominações que especificavam o grupo do qual suas práticas
definiam o seu caráter civilizatório e quanto mais um grupo resistisse a
catequização, mais seu grau de selvageria era elevado. Segundo Márcia Amantino
(2011, p. 22):
O
primeiro seria dos mansos, pacíficos e que aceitaram a catequese e o posterior
aldeamento. Viviam no litoral, perto dos aglomerados coloniais. Exerciam
atividades ligadas ao trabalho e prestavam serviços à sociedade. Geralmente
eram identificados como Tupis. Também havia aqueles que viviam no interior,
longe do litoral, nos chamados sertões. Eram os tapuias, identificados como
grupos hostis, que não aceitaram aproximações com os colonos, a catequese, o
aldeamento e muito menos o trabalho nas fazendas. Entre uns e outros, a
inimizade e as guerras. Todavia, os conflitos também ocorriam no interior de
cada um dos grupos.
Já vimos
anteriormente que a expansão da fé católica e a colonização caminharam de mãos
dadas, então, nada mais simples do que justificar a dominação dos nativos
também pelo pressuposto de que eles também deveriam colaborar para o funcionamento
da empresa colonial. Para isso os portugueses agiram, tentando a todo custo
moldar os costumes e práticas dos índios, para que os mesmos se tornassem seres
dóceis, capazes de realizarem os mais diversos trabalhos, como por exemplo, a
agricultura. Mas surgia um porém... O ameríndio possuía seu próprio sistema de
agricultura, visando apenas o necessário para se manterem, não se habituariam
facilmente, se é que se habituariam, a uma agricultura que era exigida na
colônia. Mais uma justificativa para inferiorizar o índio a condição de não
humanizado, cegando a compará-los com os africanos que apesar de também não
serem considerados “seres totalmente civilizados”, eram superiores aos
indígenas, pois estavam habituados a relação de trabalho exigidas pelos
portugueses, Mary Del Priore e Renato Pinto Venâncio (2001, p. 24) diz que:
Os
portugueses ignoravam a identidade dos povos indígenas, acusando-os de não ter
religião ou de desconhecer a agricultura. Consideravam que se nível
civilizatório era inferior ao dos nativos africanos: parecer que muito breve
iria justificar a exploração e a catequese obrigatória de tribos inteiras.
A partir dessa
visão, esses argumentos foram usados para cometerem verdadeiras chacinas a
grupos indígenas considerados desnecessários a colônia, pois já que não serviam
para trabalhar, atendendo as necessidades da colônia, nem queriam entregar suas
vidas a Deus, se convertendo ao Catolicismo, não tinham mais razão de
existirem. Esses índios acusados de impedir o avanço da colonização portuguesa
foram aos montes aniquilados. O aniquilamento de muitos como sua escravização
forçada contribuíram para que os demais sobreviventes perdessem sua identidade,
o orgulho que antes possuíam de pertencer a um determinado grupo. Um padre
quando questionado sobre o que se fazer com uma determinada tribo, pertencente
a uma região, sua resposta foi a seguinte, segundo Márcia Amantino (2011, p.
39):
A
conclusão do Padre era bastante óbvia. Perguntava-se: de que servia os índios
terem tantas terras boas que não eram cultivadas e não rendiam nada à Coroa nem
a eles? As soluções haviam sido pensadas. Sugeria que fosse escolhido um administrador
que os obrigasse ao trabalho; que as crianças aprendessem as primeiras letras,
que as meninas fossem colocadas em casas de famílias para aprender coisas de
seu sexo e, finalmente, que fossem dados às famílias indígenas pequenos pedaços
de terras para que cultivassem. O restante deveria ser arrendado pela população
não índia.
Conforme a
colonização avançava pelo litoral, os europeus tentavam “enquadrar” os ameríndios
aos poucos no sistema colonial, os que resistiam fugiam para os interiores, os
sertões, que agora iriam receber a denominação de “inferno”, pois ai residia os
“tapuias”, referência aos índios que resistiram brutalmente a civilidade,
possuíam em seus corpos a marca do demônio. As fugas eram intensas, e os que
fugiam eram estereotipados de “não civilizados”, e o interior da colônia, o
sertão, era um lugar infernal por esconder a maior parte desses bárbaros, a
parte litorânea já estava salva, os índios transformados a luz da palavra de
Deus, os Tupis, bons e civilizados, esses passaram por transformações corporais
vistas a olho nu. Os nãos conversos traziam em si a marca da condenação, seus
corpos os entregavam quanto mais bizarros fossem, na ótica portuguesa, mais
selvagem seriam. Os artefatos usados, suas vestimentas, e o uso que faziam de
seu corpo e do próximo passaram a identificar o nível de civilidade que cada
tribo possuía.
Dessa feita
percebemos que quanto mais estranhos e bizarros fossem ao olhar europeu, os
indígenas, mais longe da civilização estariam, precisando uma catequização
urgente, mesmo se fosse pelo uso da violência, o meio não importava, o
resultado era o mais importante, pois como já foi dito, seus corpos para nada
serviam, a não ser para o trabalho, mais logo foram substituídos pelos
africanos, que custavam menos, e já estavam, vamos dizer assim, “meio
civilizados”, aptos ao trabalho na colônia. Dos índios agora restava apenas
suas almas para Deus.
Autor : Walmar Machado, Historiador Pelas FIP.